A noção de sociedade empresarial tem como pressupostos a reunião de pessoas para o exercício de uma atividade econômica e a partilha dos resultados. O legítimo propósito de gerar lucros (retorno esperado pelo shareholder) sempre motivou a junção de esforços para a formação das sociedades. No entanto, ao longo das últimas décadas, para se adaptar às novas demandas social e ambiental, as empresas vêm tendo de atender às expectativas dos stakeholders (comunidade, colaboradores, fornecedores, investidores, clientes). De forma resumida, serão analisados como alguns instrumentos jurídicos podem ser utilizados para implementar os conceitos dessa nova realidade das companhias frente aos contratos privados por ela celebrados.
Em meados dos anos 1970, economistas já advertiam que a concepção da empresa com o único propósito de gerar lucros aos seus acionistas precisava ser revista. Assim, passou-se a difundir a noção do retorno aos stakeholders, sob a forma de que, além da busca pelos lucros, a administração das companhias deve zelar pela saúde e a riqueza das sociedades, assim como do meio ambiente e das gerações futuras.
Nesse novo contexto, internamente, as companhias vêm se estruturando em áreas voltadas ao estudo e à aplicação dos princípios de governança corporativa[1], bem como para atuar em conformidade com os preceitos da cultura “ESG” – “Environmental, Social and Governance”.
A concepção de se pensar na empresa como fonte geradora de externalidades positivas a toda a comunidade, bem como a adoção de práticas ESG têm instrumentos de execução conhecidos de há muito no direito contratual, a saber: a boa-fé objetiva e a função social dos contratos.
Recentemente, empresas de projeção nacional sofreram processos judiciais e severos danos à sua imagem em razão de responsáveis pela contratação de mão-de-obra sazonal terem sido investigados pela odiosa conduta de submeter trabalhadores à condição análoga à de escravizados. A propósito, longe de ser uma situação isolada, dados do Ministério do Trabalho[2] indicam que, apenas em 2023, cerca de mil e quinhentos trabalhadores foram resgatados nessas condições em nosso país.
Os mecanismos internos, notadamente o compliance e a adoção das práticas ESG, ao que tudo indica, não foram capazes de impedir a ocorrência daquele gravíssimo fato. É nesse sentido que a adoção de padrões contratuais pode colaborar tanto para evitar a ocorrência de problemas desse jaez quanto para mitigar os efeitos da responsabilização da Companhia.
Uma dessas maneiras é, valendo-se da regra geral da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, prever cláusulas-padrão nos contratos a serem firmados. Por exemplo: em uma prestação de serviços, pode-se estipular que será causa de imediata rescisão e de comunicação às autoridades competentes, independentemente de comunicação à contraparte, a constatação, pela contratante, de grave violação à legislação pela contratada, como nas hipóteses de utilização de mão-de-obra assemelhada à escravidão ou de trabalho infantil fora das hipóteses em que é admitida.
Adicionalmente, a sociedade contratante, poderá disponibilizar, em seus canais de contato, a minuta do padrão da cláusula contratual que deverá constar dos acordos por ela firmados. Nesse caso, o terceiro saberá, de antemão, a dificuldade de se insurgir contra essa estipulação.
Se houver resistência, pela parte contratada, quanto à adoção de cláusulas como a sugerida acima, é necessário manter a exigência, pois não se pode conceber a adoção de práticas de ESG por uma companhia que resista a se submeter a tais elementares deveres comunitários de conduta.
Assim, os conhecidos conceitos jurídicos da boa-fé objetiva e da função social dos contratos são instrumentos de que os operadores do direito, sobretudo os voltados ao direito empresarial, devem se valer para dar concretude às práticas de ESG.
[1] De acordo com a definição do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC): “é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas: as boas práticas de governança corporativa convertem princípios básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum”.
[2] O Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Fiscalização do Trabalho, resgatou, de janeiro a 14 de junho de 2023, um total de 1.443 trabalhadores do trabalho análogo à escravidão no Brasil” (https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2023/junho/mte-resgatou-1-443-trabalhadores-de-condicoes-analogas-a-escravidao-em -2023#)
Rodrigo Bueno
Sócio e head do departamento de Societário, M&A e Empresarial da BCVL – Braz, Coelho, Véras, Lessa e Bueno Advogados.
Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.