As chuvas que assolaram o estado do Rio Grande do Sul no início de maio configuram um evento sem precedentes. Entre 1991 e 2020, a média pluviométrica para o mês de maio em Porto Alegre foi de 112,8mm. Entre 01 e 23 de maio de 2024, a precipitação acumulada é de 461mm, superando outros momentos de calamidade, como a inundação de 1941 (405,5mm). Ainda no estado do Rio Grande do Sul, a Usina Hidrelétrica 14 de Julho foi intensamente impactada, com o rompimento parcial da barragem. De acordo com informações disponíveis, a vazão atingiu o parâmetro decamilenar (ou seja, aquela que é esperada para ser atingida uma vez em dez mil anos), totalizando 17.958,00 m³/s, muito acima da vazão natural (11.824,00 m³/s).
Voltando a Porto Alegre, o evento impactou severamente as operações do Aeroporto Internacional Salgado Filho, objeto de Contrato de Concessão celebrado em 2017. Todas as estruturas do complexo aeroportuário – em especial, pistas de pouso e decolagem e terminais de cargas e passageiros – ficaram – e, parcialmente, ainda estão – completamente submersas.
Os danos ainda são incertos, de forma que só poderão ser estimados com algum grau de concretude quando a inundação recuar. A estimativa preliminar indica que o aeroporto só poderá retomar sua operação a partir de meados de setembro, permanecendo fechado, portanto, por pelo menos quatro meses. Ao que se noticia, a Concessionária já apresentou requerimento de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do Contrato de Concessão.
Eventos como o presente inegavelmente se caracterizam como de força maior, na medida em que se encontram fora da álea de ingerência da Concessionária. Não se trata de uma falha no cumprimento das obrigações pela Concessionária em si, mas sim um evento externo, imprevisível ou, quando menos, de consequências incalculáveis. Nesse sentido, não se pode perder de vista o teor do Contrato de Concessão celebrado pela Concessionária, que expressamente prevê que eventos de força maior que não possam ser cobertos junto ao mercado securitários constituem um risco atribuído ao Poder Concedente (nos termos do item 5.2.8 do Contrato). Caso haja a possibilidade de cobertura junto ao mercado, o risco passa a ser de responsabilidade da Concessionária (item 5.4.22).
É certo que a cobertura securitária de danos ocasionados a bens atrelados a concessão é de responsabilidade da Concessionária (item 3.1.56). No entanto, muito além de uma questão ligada a reparação dos bens que integram a concessão, o complexo aeroportuário ficará inoperante por, no mínimo, quatro meses, de acordo com as estimativas de momento. É preciso que se quantifique também os danos relacionados aos lucros cessantes da Concessionária. Por mais que se adote uma operação “alternativa” (por meio da base aérea de Canoas), há um impacto no fluxo de caixa previsto no projeto concessório e que demanda uma análise acurada de eventuais prejuízos ocasionados.
A lógica subjacente a qualquer projeto concessório é a de que a matriz de riscos deve ser respeitada. Quando uma das partes sofre impactos decorrentes da concretização de risco que não assumiu contratualmente, o equilíbrio econômico-financeiro do Contrato deve ser restabelecido. Tal qual a situação extraordinária ocasionada pela pandemia da COVID-19, a situação pela qual passa o estado do Rio Grande do Sul demanda uma profícua análise dos projetos impactados e apuração de qual parte deve suportar suas consequências, à luz da matriz de riscos contratual.
Bruno Guimarães Bianchi
Sócio do departamento de Infraestrutura e Regulatório BCVL – Braz, Coelho, Véras, Lessa e Bueno Advogados.
Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP.